Os termos semiárido,
sertão e caatinga estão de tal modo interligados que acabam gerando interseções
conceituais. No site do Instituto Nacional do Semiárido (INSA), a região do
semiárido é descrita como “cenário geográfico onde ocorrem as secas”, e abrange
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe,
Bahia, além do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, e parte da
região norte do Espírito Santo.
Também chamada “não
tecnicamente” de sertão, a área tem regime de chuvas irregular (entre 400 e 800
milímetros anuais), seus solos são rasos e a vegetação é xerófila, resistente
aos períodos de estiagem. A partir das condições de solo e água, a região é
classificada em zonas: caatinga, seridó, carrasco e agreste, informa o INSA.
O etnoecólogo baiano
Juracy Marques, coordenador do mestrado em Ecologia Humana e Gestão
Socioambiental da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), explica de outra
maneira: ele inclui na “zona semiárida brasileira” o estado do Maranhão,
descarta o norte capixaba e a considera cenário do bioma caatinga, área que
ocupa 70% do território nordestino (13% do país) e abriga 63% da sua população
(18% da população nacional) — cerca de 28 milhões de pessoas.
Autor de diversos
livros sobre a temática, Juracy esclarece que os termos são indissociáveis,
frequentemente usados como sinônimos do mesmo espaço geográfico. Mesmo assim,
explica que a palavra sertão, com origem no verbo latino ser/sero, que quer
dizer ligar com fio, tecer, juntar, atar, engajar, encadear, definiria a área
não cultivada, mais seca, com poucos recursos, afastada das cidades; semiárido
seria o clima que predomina no sertão.
No site do INSA há a
informação de que a caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, que tem este
nome graças a sua aparência durante a seca, quando as folhas caem e os troncos
aparecem esbranquiçados. O termo, de origem tupi, significa mata branca, uma
combinação dos elementos ca’a (floresta), tî (branco) e o sufixo ngá (que
lembra).
Vítima do
desenvolvimento
A Articulação no
Semiárido reconhece a importância da caatinga, onde são encontrados cerca de
900 tipos de animais e uma quantidade muito variada de plantas e árvores.
“Apesar da aparência seca, é um terreno fértil, com árvores resistentes, que
armazenam água para a própria sobrevivência, como o umbu, o mandacaru e várias
outras”, diz Naidison Baptista, coordenador nacional da ASA. “Uma das coisas
que a gente preza muito é a preservação da caatinga”, destaca, lembrando que o
bioma vem sendo devastado por grandes projetos. “Nos últimos três anos, mais de
16 mil quilômetros quadrados do semiárido foram devastados pela agropecuária
extensiva e pela produção de carvão para siderúrgicas”, denuncia.
Naidison considera
que o semiárido “é uma vítima secular desse processo de desenvolvimento”, que
tem de um lado os grandes latifúndios e, de outro, parcelas minúsculas de
terras para agricultores. Estudos científicos demonstram que o ideal é que cada
criador de animais da região tivesse à disposição 200 hectares de terra. Hoje,
as propriedades chegam a 4 hectares, quando muito.
“É um processo
predatório, de extrema concentração de terra e de extrema concentração de
miséria”, diz Naidison. Uma estratégia útil de manutenção do coronelismo, do
poder político das mesmas famílias, dos mesmos grupos hegemônicos e econômicos,
“que se servem da pobreza, da miséria das pessoas para enriquecer”.
Um modelo de
desenvolvimento que se apoia no carro-pipa, nas frentes de trabalho.
Desempregados no período das secas, os agricultores são recrutados para escavar
açudes nas propriedades dos fazendeiros, que depois são cercados, impedindo as
pessoas até de beber a água. “O problema do semiárido não é a seca; é a cerca,
que cerca a terra e a água”.
Exportação e
exploração
Outros problemas
detectados por ele são projetos de criação de animais não nativos da caatinga,
inadequados à região, e os grandes processos de irrigação que acompanham a
instalação das indústrias de produção para a exportação (de vinho, melão ou
manga), que além de trazer consigo agrotóxicos e transgênicos, faz com que as
pessoas deixem sua terra e se transformem em operários nas indústrias. O
coordenador da ASA aponta que este é um novo processo de exploração
“despistada”.
Ele aposta no fim
deste processo: “Nós temos inúmeros casos das pessoas se manifestando com
liberdade”. Ele narra a história de um agricultor, de Feira de Santana (BA),
que se considerava “acorrentado”. Para garantir água para a mulher e os filhos,
tinha que votar em determinadas pessoas. “Hoje eu posso votar em quem eu
quiser”, teria dito depois de garantir sua cisterna.
Outro exemplo
simbólico dessa autonomia seria a mudança na rotina das mulheres. Muitas delas
caminhavam diariamente até 20 quilômetros, carregando 20 litros de água. Hoje,
podem estudar, produzir. “São transformações profundas, a partir de um elemento
simples, que custa hoje R$ 1.800,00”, assegura Naidison.
Indústria da seca
Todo este contexto
garantiu a associação, quase imediata, da região Nordeste às imagens da seca,
da pobreza e da fome. Com exceção da faixa litorânea, onde se situa a maioria
das capitais e os balneários e resorts que recebem turistas de todo o mundo, o
interior ainda é, para a maioria das pessoas, sinônimo dos versos escritos por
Luiz Gonzaga (1912-1989) e Humberto Teixeira (1915-1979) para Asa Branca
(1947): “Que braseiro, que fornaia; nem um pé de prantação. Por farta d’água,
perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”.
Não foi somente o
Rei do Baião que registrou a direta associação do sertão com precárias
condições de vida e êxodo rural. Também a literatura praticada na região no
século 20 reforçou o estereótipo do retirante, fugindo do solo árido e estéril
para o Sudeste, em busca de trabalho. São obras que se tornaram clássicos nacionais,
como Vidas Secas (1938), do alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), e O Quinze
(1930), da cearense Raquel de Queiroz (1910-2003).
Segundo a
pesquisadora Lúcia Gaspar, em artigo publicado no site da Fundação Joaquim
Nabuco, as secas são conhecidas no Brasil desde o século 16. Ela aponta que o
fenômeno ecológico também é político, na medida em que reflete “a manutenção de
uma estrutura social profundamente concentradora e injusta”, onde o controle da
propriedade da terra e do processo político está nas mãos das oligarquias
locais. A questão não se resume à falta de água, mas a sua má distribuição.
A prática, conhecida
como indústria da seca, permite que grandes latifundiários nordestinos
beneficiem-se de investimentos realizados e dos créditos bancários concedidos à
região, enquanto os trabalhadores ficam vulneráveis. “A tragédia da seca
encobre interesses escusos daqueles que têm influência política ou são
economicamente poderosos, que procuram eternizar o problema e impedir que ações
eficazes sejam adotadas”, sustenta.
Em 1951, a Lei 1.348
delimitou o Polígono das Secas, área de 950 mil quilômetros quadrados (52,7% do
Nordeste), que vai desde o Piauí até o norte de Minas Gerais, onde o clima é
semiárido e a vegetação é caatinga. As ações governamentais, no entanto,
começaram no início do século 20, com a criação de uma inspetoria de obras —
que mais tarde se transformaria no Departamento Nacional de Obras contra as
Secas (DNOCS).
A estratégia adotada
foi a construção de estradas, barragens, açudes e poços, de maneira a dar apoio
para que a agricultura suportasse os períodos de seca. Em 1945, o governo
fundou a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) e, em 1948, a
Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), hoje denominada Companhia de Desenvolvimento
do Vale do São Francisco (Codevasf). Em 1952, nascia o Banco do Nordeste do
Brasil (BNB) e, em 1959, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
(Sudene). Os organismos tinham como objetivos estimular o desenvolvimento da
economia nordestina e diminuir a disparidade em relação ao Centro-Sul do país.
O que se viu mais
comumente, no entanto, foram as ações emergenciais, como distribuição de cestas
básicas e a instituição de frentes de trabalho, criadas para ocupar os
desempregados durante o período das secas, dirigidas para a construção de
estradas, açudes, pontes. “O Nordeste é viável”, sustenta Lúcia. Seus maiores
problemas, diz, são provenientes mais da ação ou omissão dos homens e da
concepção da sociedade que foi implantada, do que propriamente das secas de que
é vítima.
Sua análise se
aproxima da ideia imortalizada por Euclides da Cunha (1866-1909), no clássico
Os sertões (1902), que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Para o
escritor fluminense, que cobriu a Revolta de Canudos (1896-1897) para O Estado
de São Paulo, é “um titã acobreado e potente”, que pode se tornar retirante por
conta da seca, mas que retorna sempre ao sertão.
Autor: (A.D.L.)