sexta-feira, 17 de maio de 2013

“O problema do semiárido não é a seca, é a cerca”





Os termos semiárido, sertão e caatinga estão de tal modo interligados que acabam gerando interseções conceituais. No site do Instituto Nacional do Semiárido (INSA), a região do semiárido é descrita como “cenário geográfico onde ocorrem as secas”, e abrange Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, além do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, e parte da região norte do Espírito Santo.

Também chamada “não tecnicamente” de sertão, a área tem regime de chuvas irregular (entre 400 e 800 milímetros anuais), seus solos são rasos e a vegetação é xerófila, resistente aos períodos de estiagem. A partir das condições de solo e água, a região é classificada em zonas: caatinga, seridó, carrasco e agreste, informa o INSA.

O etnoecólogo baiano Juracy Marques, coordenador do mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), explica de outra maneira: ele inclui na “zona semiárida brasileira” o estado do Maranhão, descarta o norte capixaba e a considera cenário do bioma caatinga, área que ocupa 70% do território nordestino (13% do país) e abriga 63% da sua população (18% da população nacional) — cerca de 28 milhões de pessoas.

Autor de diversos livros sobre a temática, Juracy esclarece que os termos são indissociáveis, frequentemente usados como sinônimos do mesmo espaço geográfico. Mesmo assim, explica que a palavra sertão, com origem no verbo latino ser/sero, que quer dizer ligar com fio, tecer, juntar, atar, engajar, encadear, definiria a área não cultivada, mais seca, com poucos recursos, afastada das cidades; semiárido seria o clima que predomina no sertão.

No site do INSA há a informação de que a caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, que tem este nome graças a sua aparência durante a seca, quando as folhas caem e os troncos aparecem esbranquiçados. O termo, de origem tupi, significa mata branca, uma combinação dos elementos ca’a (floresta), tî (branco) e o sufixo ngá (que lembra).
Vítima do desenvolvimento

A Articulação no Semiárido reconhece a importância da caatinga, onde são encontrados cerca de 900 tipos de animais e uma quantidade muito variada de plantas e árvores. “Apesar da aparência seca, é um terreno fértil, com árvores resistentes, que armazenam água para a própria sobrevivência, como o umbu, o mandacaru e várias outras”, diz Naidison Baptista, coordenador nacional da ASA. “Uma das coisas que a gente preza muito é a preservação da caatinga”, destaca, lembrando que o bioma vem sendo devastado por grandes projetos. “Nos últimos três anos, mais de 16 mil quilômetros quadrados do semiárido foram devastados pela agropecuária extensiva e pela produção de carvão para siderúrgicas”, denuncia.

Naidison considera que o semiárido “é uma vítima secular desse processo de desenvolvimento”, que tem de um lado os grandes latifúndios e, de outro, parcelas minúsculas de terras para agricultores. Estudos científicos demonstram que o ideal é que cada criador de animais da região tivesse à disposição 200 hectares de terra. Hoje, as propriedades chegam a 4 hectares, quando muito.

“É um processo predatório, de extrema concentração de terra e de extrema concentração de miséria”, diz Naidison. Uma estratégia útil de manutenção do coronelismo, do poder político das mesmas famílias, dos mesmos grupos hegemônicos e econômicos, “que se servem da pobreza, da miséria das pessoas para enriquecer”.

Um modelo de desenvolvimento que se apoia no carro-pipa, nas frentes de trabalho. Desempregados no período das secas, os agricultores são recrutados para escavar açudes nas propriedades dos fazendeiros, que depois são cercados, impedindo as pessoas até de beber a água. “O problema do semiárido não é a seca; é a cerca, que cerca a terra e a água”.

Exportação e exploração

Outros problemas detectados por ele são projetos de criação de animais não nativos da caatinga, inadequados à região, e os grandes processos de irrigação que acompanham a instalação das indústrias de produção para a exportação (de vinho, melão ou manga), que além de trazer consigo agrotóxicos e transgênicos, faz com que as pessoas deixem sua terra e se transformem em operários nas indústrias. O coordenador da ASA aponta que este é um novo processo de exploração “despistada”.

Ele aposta no fim deste processo: “Nós temos inúmeros casos das pessoas se manifestando com liberdade”. Ele narra a história de um agricultor, de Feira de Santana (BA), que se considerava “acorrentado”. Para garantir água para a mulher e os filhos, tinha que votar em determinadas pessoas. “Hoje eu posso votar em quem eu quiser”, teria dito depois de garantir sua cisterna.

Outro exemplo simbólico dessa autonomia seria a mudança na rotina das mulheres. Muitas delas caminhavam diariamente até 20 quilômetros, carregando 20 litros de água. Hoje, podem estudar, produzir. “São transformações profundas, a partir de um elemento simples, que custa hoje R$ 1.800,00”, assegura Naidison.
Indústria da seca

Todo este contexto garantiu a associação, quase imediata, da região Nordeste às imagens da seca, da pobreza e da fome. Com exceção da faixa litorânea, onde se situa a maioria das capitais e os balneários e resorts que recebem turistas de todo o mundo, o interior ainda é, para a maioria das pessoas, sinônimo dos versos escritos por Luiz Gonzaga (1912-1989) e Humberto Teixeira (1915-1979) para Asa Branca (1947): “Que braseiro, que fornaia; nem um pé de prantação. Por farta d’água, perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”.

Não foi somente o Rei do Baião que registrou a direta associação do sertão com precárias condições de vida e êxodo rural. Também a literatura praticada na região no século 20 reforçou o estereótipo do retirante, fugindo do solo árido e estéril para o Sudeste, em busca de trabalho. São obras que se tornaram clássicos nacionais, como Vidas Secas (1938), do alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), e O Quinze (1930), da cearense Raquel de Queiroz (1910-2003).

Segundo a pesquisadora Lúcia Gaspar, em artigo publicado no site da Fundação Joaquim Nabuco, as secas são conhecidas no Brasil desde o século 16. Ela aponta que o fenômeno ecológico também é político, na medida em que reflete “a manutenção de uma estrutura social profundamente concentradora e injusta”, onde o controle da propriedade da terra e do processo político está nas mãos das oligarquias locais. A questão não se resume à falta de água, mas a sua má distribuição.

A prática, conhecida como indústria da seca, permite que grandes latifundiários nordestinos beneficiem-se de investimentos realizados e dos créditos bancários concedidos à região, enquanto os trabalhadores ficam vulneráveis. “A tragédia da seca encobre interesses escusos daqueles que têm influência política ou são economicamente poderosos, que procuram eternizar o problema e impedir que ações eficazes sejam adotadas”, sustenta.

Em 1951, a Lei 1.348 delimitou o Polígono das Secas, área de 950 mil quilômetros quadrados (52,7% do Nordeste), que vai desde o Piauí até o norte de Minas Gerais, onde o clima é semiárido e a vegetação é caatinga. As ações governamentais, no entanto, começaram no início do século 20, com a criação de uma inspetoria de obras — que mais tarde se transformaria no Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS).

A estratégia adotada foi a construção de estradas, barragens, açudes e poços, de maneira a dar apoio para que a agricultura suportasse os períodos de seca. Em 1945, o governo fundou a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) e, em 1948, a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), hoje denominada Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf). Em 1952, nascia o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e, em 1959, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Os organismos tinham como objetivos estimular o desenvolvimento da economia nordestina e diminuir a disparidade em relação ao Centro-Sul do país.

O que se viu mais comumente, no entanto, foram as ações emergenciais, como distribuição de cestas básicas e a instituição de frentes de trabalho, criadas para ocupar os desempregados durante o período das secas, dirigidas para a construção de estradas, açudes, pontes. “O Nordeste é viável”, sustenta Lúcia. Seus maiores problemas, diz, são provenientes mais da ação ou omissão dos homens e da concepção da sociedade que foi implantada, do que propriamente das secas de que é vítima.

Sua análise se aproxima da ideia imortalizada por Euclides da Cunha (1866-1909), no clássico Os sertões (1902), que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Para o escritor fluminense, que cobriu a Revolta de Canudos (1896-1897) para O Estado de São Paulo, é “um titã acobreado e potente”, que pode se tornar retirante por conta da seca, mas que retorna sempre ao sertão.
Autor: (A.D.L.)