A geografia é um desses negócios chatos que inventaram para ser a palmatória intelectual das crianças. Não dá prazer nenhum brincar de ser recipiente de nomes difíceis e ainda ter que repetir tudo certinho na hora das provas.
A tortura geográfica, comum na maioria das escolas, é um exercício constante de ver um mundo de coisas, decorar o máximo e não aprender nada. São aquelas palavras cheias de nós consonantais que, vez por outra, o sujeito tem que repetir lá na frente, correndo o risco de se engasgar com uma montanha e ser motivo de deboche a semana inteira.
A utilidade que a criança vê em o
aquecedor do Lada, apropriado para derreter neve, no Nordeste brasileiro. No
fundo, é uma violência desmedida da sociedade inteira contra a meninada que
queria mesmo era brincar e fazer coisas divertidas.
Ao invés de sentar para ouvir assuntos
estranhos à sua vida, talvez a criança preferisse conversar sobre sua casa com
aqueles terríveis conflitos de espaço, ou sobre o bairro com suas ruas plenas
de lembranças, ou da cidade com os seus atrativos e desafios.
A infância para passear é uma
reivindicação permanente, um outdoor
estampado na testa de milhares de meninos e meninas. Botar os pés no chão e
sair por aí conhecendo os lugares: andando, olhando com admiração e medo a
loucura das construções adultas, sentindo o cheiro das árvores e da fumaça das
fábricas, tateando vitrinas como muros impenetráveis, ouvindo o rugir dos
sapatos apressados nas horas de pique das praças centrais.
Todavia, como diz Rubem Alves, a
infância é uma coisa inútil, assim como tudo mais nesta sociedade da produção e
do consumo, onde a criança só vale enquanto promessa de boa fortuna.
A Geografia que se aprende na escola,
aparentemente inútil, tem uma utilidade ímpar porque produz uma enorme massa
informe de alienados. As pessoas não sabem que o espaço em que vivem tem um
sentido que não aparece, porque detrás dos objetos sem história há histórias
que desconhecemos. É que estávamos pensando no Himalaia enquanto o serviço de
transporte coletivos em
João Pessoa foi pensado para enriquecer os empresários e
servir mal a população sem rodas.
Em uma “cidade boa para viver”, talvez
não seja de bom tom usar da Geografia para perceber favelas pipocando aos
quatro cantos, ou para demonstrar que é possível de um mesmo ponto na verde
“Paris brasileira” – o Bar da Pólvora – admirar o pôr-do-sol e ver o lixão do Roger,
ou para entender a origem dos “pegas” desiguais na Epitácio Pessoa entre carros
importados e carroças puxadas a burro. O mesmo espaço comporta jegues e jatos.
As pessoas podem até não acreditar, mas
a ciência geográfica tem uma utilidade que poucos conseguem ver, pois um dos
papéis que cumpre é justamente o de cegar a sociedade, desde a infância, de uma
leitura da produção social desde espaço cheio de contradições.
Por outro lado, como em tudo mais, o
fazer cientifico só serve quando feito por prazer, coisa esquecida nestes
tempos cabeludos em que viver para a felicidade é quase um crime, parafraseando
Brech. A Geografia, assim como a criança, é um perigo para os homens sérios que
fazem do lucro seu sentido existencial, porque no meio da brincadeira ela pode
deixar muitos reais completamente nus.
FERNANDES, Manoel. Aula de geografia e algumas
crônicas. Campina Grande: Bagagem, 2003 p 63-66